sexta-feira, 26 de março de 2010

A ilha de Scorcese

Martin Scorcese é quase uma unanimidade no meio daqueles que tem o cinema como religião. Muitos o consideram como “o” maior cineasta vivo. Apesar de reconhecer a sua genialidade em “filmes-marco” como os interessantíssimos “Táxi Driver” e “Caminhos perigosos”, apenas o vejo como um dos mais talentosos diretores em Hollywood hoje, mas que também sucumbe a sua própria pretensão. Afinal, filmes como “Cabo do medo” não são exemplares de grandes diretores. “Vivendo no limite”, minha estréia traumática em seu universo, é o cúmulo do discurso vazio. “Gangues de Nova Iorque” e “O aviador” são filmes tão ambiciosos que se bastam em suas próprias idiossincrasias: Não há diálogo com o espectador. Nos últimos anos, parece que Scorcese vem procurando reavaliar esse diálogo, casando seu talento e audácia estética com certa despretensão ideológica; consequentemente o seu primeiro Oscar de melhor filme veio com sua adaptação de um filme asiático, o ótimo “Os infiltrados”, em 2006.
Seguindo esse raciocínio artístico, ele acabou de estrear seu mais novo filme “A ilha do medo”, adaptação de um livro de Dennis Lehane (com o qual eu falei num post, no início do mês) “Passageiro 67” . Mantendo a bem sucedida parceria com Leonardo DiCaprio (parceria essa, que só trouxe maturidade ao astro) e seguindo um caminho seguro,pela literatura deste autor (que já rendeu uma obra-prima “Sobre meninos e lobos” e um bom filme “Medo da verdade”), o cineasta comprovou sua genialidade mesmo em um filme tão intricado e complicado de se adaptar.
Em 1954, Teddy Daniels (DiCaprio) investiga o desaparecimento de um paciente no Shutter Island Ashecliffe Hospital, que fica numa ilha um tanto medonha. No local, ele descobre que os médicos realizam experiências radicais com os pacientes, envolvendo métodos ilegais e antiéticos. Óbvio que em se tratando de um livro de Lehane, nem tudo é o que parece ser. E, neste caso, os conflitos internos legitimam ainda mais o andamento da história. Por isso até que o mistério, neste caso, é o menos importante; e esse descompromisso só estimulou a inteligência de Scorcese. Utilizando referências estéticas de filmes antigos como “O gabinete do Dr. Caligari”, de 1920, o diretor potencializou a áurea de suspense psicológico, com espertos maneirismos claustrofóbicos que confabulam com clima conspiratório da trama.
Mais uma vez é preciso destacar a grande performance de DiCaprio, que se firmou mesmo como grande ator desta geração. Mark Ruffalo é outro que tem uma atuação brilhante, num personagem dificílimo. Ben Kingsley, Patrícia Clarkson e Michelle Williams também se destacam, pela dignidade com que encaram seus papéis.
Apesar de tido como um filme menor do diretor, particularmente, considero esse um de seus melhores filmes. Na verdade, fica claro o desprendimento da grandiloqüência dele, até porque esse filme é tão grandioso e complexo como “O aviador”, mas a forma como encara esse desafio é bem mais orgânica. E isso é magistralmente comprovado no fim do filme, quando se concentra em relatar a história trágica da família do protagonista. São cenas tão fortes (no sentido mais substancial da palavra) e filmadas de uma forma tão vigorosa, que ali nos lembramos o que e até aonde pode ir o cinema de Scorcese.

Dica de Música: ”O mundo” (Pedro Luís e a parede e Ney Matogrosso)

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