sábado, 26 de junho de 2010

Fantasmas pessoais

Será que dramas e angústias pessoais são requisitos para a genialidade de um artista? Isso ajudaria a explicar a importância artística de Van Gogh ou do escritor Caio Fernando Abreu? Enfim, seja como for, deve ter alguma relação metafórica entre o histórico trágico do cineasta Roman Polanski e seu legado cinematográfico. Na infância, sua família mudou-se da França para a Polônia pouco antes de estourar a Segunda Guerra e a Alemanha massacrar o país. Seus pais (judeus não praticantes) foram mandados para o campo de concentração e sua mãe foi morta na câmara de gás. Já adulto, em 1969, teve a então esposa, a atriz Sharon Tate, assassinada brutalmente (ela estava grávida!) por um grupo sinistro de uma seita que invadiu sua mansão em Beverly Hills. Além dela, foram assassinados mais quatro amigos, que estavam na casa. Em 77 veio à tona o famoso caso de estupro de uma menina de 13 anos, ocorrido na casa de Jack Nicholson. O diretor declarou-se culpado, a menina (hoje, uma senhora casada) retirou a queixa e o caso se estende até hoje, onde cumpre prisão domiciliar na Suíça. Numa vida rica em revezes (e tropeços) acaba que a obra funciona como reflexo de uma condição. Não há como fugir. Se fizermos um retrospecto em sua filmografia, é nítida a constância de personagens angustiados e trafegando na linha tênue entre a vida e a morte. Aliás, a morte para Polanski é como o medo para Hitchcock: mais do que motivações narrativas, são justificativas humanas.
A justificativa de seu novo filme "O escritor fantasma" só é inteiramente assimilada nos últimos 20 minutos do filme, quando confirmamos que o cineasta, mesmo literalmente preso aos seus problemas pessoais, continua com a mesma precisão de filmes tão perturbadores como "O bebê de Rosemary".
O filme conta a história de um escritor que é contratado para terminar a autobiografia de um ex - primeiro ministro britânico. Durante o processo, ele acaba descobrindo segredos que põe em risco o seu trabalho e sua vida. O roteiro faz clara alusão à figura do ex - primeiro ministro Tony Blair, fazendo uma denotação política de sua postura ventríloqua na guerra do Iraque. Aliás, vale comentar que o ex-agente 007 Pierce Brosnan tem uma de suas melhores atuações neste papel. O escritor sem nome, vivido por um soturno Ewan Mc Gregor, parte de sua invisibilidade para compreender aquele universo e isso é usado como ferramenta de Polanski para situar também uma espécie de afetação geopolítica do resto da União Européia frente ao quase absolutismo britânico no bloco. Isso claro, em referências bem sutis.
O diretor ambienta a trama com uma frieza estética e formal que ajuda na climatização de seu protagonista, em cenas belíssimas numa praia nublada ou numa Inglaterra caracteristicamente fria e chuvosa. A trilha incidental também acompanha essa obtusidade. São esses detalhes que dão propriedade a Polanski para justamente fazer um filme de gênero sem se aprisionar a ele. E até o roteiro (também do diretor, com auxílio do autor do livro a qual o filme é baseado, Robert Harris) trafega por esses extremos de identidade. As atrizes Ollivia Williams e Kim Cattrall apresentam-se com personagens importantes à história, em performances dignas. E, aos 76 anos, o cineasta acerta mais uma vez (depois do ambicioso "Oliver Twist") em um filme de grande pertinência e força realística. Nesse contexto, "O escritor fantasma" além de ser um filme excelente, tem uma das melhores conclusões já feitas. Por ser trágica e sem concessões. Seria esse o ideário que a vida formatou ao talento, a psique e a visão de Polanski? Talvez. Neste caso, o cinema transforma-se numa sessão de psicanálise.

Dica de Música: "Lanterna dos afogados" (Maria Gadu)

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