sábado, 26 de junho de 2010

Doces Bárbaros

Já que vivemos num mundo dominado pelo cinismo, nada mais eficiente para um espetáculo (seja ele qual for) do que dialogar com o público pelas vias do politicamente incorreto. É essa a força vigorosa do musical ''Avenida Q", mais uma elogiada adaptação da dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho, em cartaz no Teatro Carlos Gomes, aqui no Rio. Apesar da natureza essencialmente norte-americana, "Avenida Q" se universaliza pela corajosa e irreverente crítica que faz a seu próprio umbigo: o modo e o sonho de vida americanos (o que, pelo menos até os últimos anos Bush, não era assim tão comum). Com isso, a trama (e suas camadas) é plenamente assimilada, afinal, rir de si mesmo é quase um patrimônio imaterial dos brasileiros. O próprio uso de bonecos para dimensionar singularmente as falas, dá um toque ainda mais irônico ao discurso iconoclasta, originalmente escrita por Robert Lopez, Jeff Marx e Jeff Whitty. As músicas (muito boas, por sinal) são implacáveis, não perdoando nenhuma das chamadas minorias, destilando (uma deliciosa) incorreção sobre negros, gays, imigrantes e afins, para justamente evocar o sentido de que a sociedade na realidade é, no todo, tão marginalizada quanto àqueles que ela própria marginaliza. Fora que ainda sobram farpas para o desencanto geracional de um tempo em que os rumos futuros tornam-se obscuros diante de um modo de vida tão estabelecido como o capitalista pós-moderno.
A encenação mantém o padrão internacional, com um cenário detalhadamente apropriado, figurinos funcionais e atores excepcionais na complexa engrenagem de atuar e dar vida a bonecos ao mesmo tempo. Aliás, o ótimo elenco só comprova que o Brasil tem sim sua expertise para musicais ambiciosos. Möeller e Botelho tem se atentado cada vez mais isso. "Avenida Q" é um espetáculo solar e muito bem pensado (talvez o roteiro fique redundante em alguns momentos, camuflados pela imposição da dinâmica do humor). Você ri, mas ri de nervoso. Se não por identificação, ao menos por assimilação, o que afinal, quer dizer a mesma coisa.

Dica de Música: "Odara" (Caetano Veloso)

Nenhum comentário: