segunda-feira, 23 de março de 2009

Meus heróis morreram de overdose?

Numa aula de Estética, na faculdade onde estudo jornalismo, o professor fez uma reflexão sobre a ruptura, no campo cultural do ser humano. Alertou que nossos olhos são adestrados ao que nos é apresentado diariamente, tornando nossa visão perigosamente estigmatizadora. O remédio para isso residia na ruptura aos padrões, em favor do enaltecimento do olhar pessoal de cada um ao mundo que nos cerca. Ruptura. Ao assistir ao filmaço "Watchmen" de Zach Snyder, baseado na obra em quadrinhos de Alan Moore, lembrei-me dessa aula e dessa palavra. Moore é um dos quadrinistas mais interessantes de todos os tempos, uma vez que dignificou as subestimadas histórias em quadrinhos (hq) com criações substancialmente irônicas e politizadas. Sua obra é marcada pela ruptura aos padrões infantilóides que o gênero oferecia, trazendo ao público adulto uma alternativa de leitura sob os traços em animação. "Watchmen" é, sem dúvida, sua obra - prima pela forma genial como Moore metaforiza seu país (Eua) e o mundo, investigando a decadência de um, outrora célebre, grupo de super-heróis. Esse é o resumo mais simples que consigo contar, já que há muita complexidade embutida nessa hq, que fora lançada em 1986 em 12 volumes. E, apesar de parecer papo de fã (no meu caso, recente) "Watchmen" foi considerada pela (má humorada) revista Times, como a única hq na lista dos cem melhores romances escritos de todos os tempos. Não é algo a se subestimar.
É obvio que, ao propor a transição da hq para o cinema, qualquer diretor do planeta iria sofrer com muita celeuma. O próprio criador da série disse que a obra era “infilmável”. E, convenhamos que, quem lê a história, encontra dificuldades em vislumbrar essa adaptação. Mas, após tanta novela de bastidores, troca de diretores e afins, eis que Zack Snyder (diretor de um dos melhores filmes de terror já feitos “Madrugada dos mortos” e do estiloso “300”) enfim realiza a adaptação e com êxito. Snyder é um diretor que se destaca pelo forte enfoque na estética (ou seria estilismo?) em seus trabalhos. "Watchmen" é um ponto de equilíbrio nesse sentido. Mas ainda assim, é por esse viés que o filme entrega uma das aberturas mais brilhantes de todos os tempos, onde o diretor sintetiza o entendimento da história com apurada inteligência narrativa.


Um dos pontos altos do filme é a verdadeira façanha que fora conseguir arrojar o roteiro do filme brilhantemente (coisa que transposições como a do best-seller “O código da Vinci” feita em parceria entre Ron Howard e Akiva Goldsman, não conseguiram mesmo), já que, se não dá para transpor todos os volumes no filme (dariam mais de 5 horas) é preciso perspicácia para captar pelo menos a essência da trama. E aí que muitos fãs xiitas se equivocam: não dá para querer ver o quadrinho diluído na telona. São veículos diferentes e isso deve ser levado em conta. Fernando Meirelles não precisou levar o romance de Saramago ao pé da letra para tornar “Ensaio sobre a cegueira” respeitosamente crível ao universo do autor. Apesar das excessivas críticas, não concordo que "Watchmen", o filme, traia sua essência de hq. Snyder conduz toda a história mantendo os signos básicos de Moore, como a ironia política, a ambiguidade humana e um certo distanciamento racional do discurso. Tudo sob os alicerces da ruptura entre gêneros, e a maior prova disso é que o diretor torna os impactos sexuais e violentos (que alinhavam aquele universo) muito mais gráficos que o material original. O filme tem seus deslizes como a inconsequente opção de Snyder na condução das diversas músicas que permeam todo o filme, sem uma uniformidade (e contrastando com a própria estética do longa). Parece uma jukebox, tocando músicas a ermo (Ainda que certas escolhas dêem um clima muito próprio às cenas: “Unforgettable” de Nat King Cole, como trilha sonora para um assassinato brutal de um importante personagem do filme, foi genial). Outro ponto fraco é a atuação da maioria do elenco, muito aquém do projeto. Os pouquíssimos destaques ficam nas costas de atores como Jeffrey Dean Morgan (captando perfeitamente seu “Comediante”) e Jackie Earle Haley (este, por dentro e por fora da máscara sinistra de Rorschach, com uma atuação arrepiante, digna de Oscar).
Seguindo a linha qualitativa de outros filmes baseados em hqs como “Batman” de Tim Burton, “Batman – O cavaleiro das trevas”, “X-men 1 e 2” e “Spider-men 2 e 3”
"Watchmen" encaixa-se no panteão das melhores adaptações para o cinema. Por mais que tentem esvaziar o conteúdo da história, é um filme adulto, de apuro reflexivo e muito corajoso (tanto para o público como para o mainstrean). Afinal, num meio social tão carente de heróis (dentro e fora das telas) tanto a hq quanto o filme (estes com meios visualmente ainda mais atrativos) vem para relativizar o papel do heroísmo para o ser humano. E eu termino com uma frase emblemática do escritor russo (com suas abstrações afiadas) Fiódor Dostoievski: “Não é a Deus que o homem procura, é, sobretudo, o milagre que ele procura”.
http://www.youtube.com/watch?v=nwrSgao6I4w

Dica de música: “No Line on the Horizon” (U2)









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