terça-feira, 26 de maio de 2009

Antes fosse somente Sodoma...


Platão dizia que “a parte que ignoramos é muito maior que tudo quanto sabemos”. E ele falou isso tendo como referencial a sociedade a qual vivia.
É interessante analisar como cada país tem a sua ferida, muitas vezes exposta, no âmbito social. Seja a violência urbana das grandes cidades do Brasil, a paranóia cotidiana nos Eua, a inconstância estatal da China, etc, etc. Quando paramos para entender a gênese destas anomalias, a complexidade do esclarecimento é tamanha que o cinema não poderia ficar de fora desta discussão.
Assim como “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles, que se colocou como espelho de uma realidade escamoteada pelas convenções sociais, o cinema italiano também devia a seu território, uma visão emblemática de suas chagas sociais. O crime organizado na Itália tem uma difusão e um poder impressionante no país. Pela sofisticação e influencia em diversos cânones da estrutura social, a máfia italiana há muito, tornou-se uma espécie de poder paralelo que ditam as (suas) regras em boa parte da Europa e no mundo, tendo uma de suas bases instaladas até aqui no Brasil. Baseado no premiado livro homônimo de Roberto Saviano, o filme “Gomorra”, que foi lançado em dvd, depois de ter feito barulho pelo mundo, destrincha toda a rede que comporta as atividades da organização criminal Camorra no país. Não li o livro, mas acompanhei uma interessante reportagem do autor – que vive sob severa proteção policial desde que publicou o livro – no Caderno Mais, da Folha de São Paulo. Saviano teve a vida transformada após o livro. Assim como adquiriu prestígio no mundo (apesar de em seu país, ser costumeiramente acusado de oportunista), perdeu o direito à liberdade, já que os grandes líderes do crime organizado oferecem milhões por sua cabeça.
O filme, dirigido por Matteo Garrone, despe-se de qualquer glamour que o universo mafioso cinematográfico costuma evocar, e faz um retrato cru e assustadoramente verossímil das atividades deste crime organizado. O diretor optou por uma estética documental, o que confere um ar de urgência ao espantoso dia-a-dia dos atores deste conflito napolitano. Acompanhamos quatro tramas que incidem sobre a máfia e suas co-relações e vemos o quanto seu poder é multifacetado. Dos desfiles de moda de Milão ao comércio de exportação, o Camorra estende seus domínios e o filme (e o livro) vão destrinchando toda a trajetória e implicações disto. É engraçado notar que, assim como acontece deste lado dos trópicos, as autoridades permitiram que a organização tomasse toda essa proporção e hoje, fazem dessa possível redenção, um plano de governo.
O filme não se propõe a dar respostas, mas a levantar questões. A violência gráfica das cenas conflita com a violência psicológica que esta relação filme-espectador nos impõe, pois em tempos de milícias e afins, a assimilação pode ser perturbadora. E a frase de Platão infelizmente traduz um pouco àquilo que tentamos entender na condição de vítimas de um sistema degradante. Filmaço.

Dica de música: "Haiti" (Caetano Veloso)

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