quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Festival do Rio: "Lope" é um épico de DNA brasileiro

Programado para encerrar o Festival do Rio 2010, o filme Lope de Andrucha Waddington tem muito a ver com a representatividade do próprio Festival. Lope é uma superprodução multinacional (tem grana daqui, da Espanha e de outros países) que, assim como o Festival do Rio, comprova a penetração do país na cinematografia mundial.
O filme privilegia o período da vida do poeta e dramaturgo Félix Lope de Vega (1562-1635), em fins do século XVI, em que ele retorna da guerra e tentar ganhar a vida escrevendo comédias em Madri, que vivia a efervescência teatral nas rodas sociais. Boêmio e romântico, Lope acaba enredado em intrigas ao se envolver com a filha do dono do teatro para o qual consegue escrever. Waddington, que vinha de filmes de forte carga dramática como o belo Casa de Areia, mostra muita competência ao manejar os códigos técnicos dos grandes épicos americanos, na qual o filme se ancora, auxiliado por uma fotografia exuberante e trilha catártica. Diria que na forma busca essa referências, mas no conceito é claramente influênciado pela literatura européia, indo de Moliére a Shakespeare.
O ator espanhol Alberto Ammann – presente na Sessão de Gala a qual assisti, assim como sua parceira de cena, a também espanhola Pilar López de Ayala -, tem o carisma preciso para o papel, que oscila entre a densidade e o humor, perfeitamente. Sônia Braga, notadamente envelhecida, tem participação ligeira e Selton Melo vive um marquês aristocrata com a correção de sempre (de sempre, mesmo!).
Se na razão, ou seja, na técnica, o diretor é eficaz, saindo-se bem na complexidade de uma superprodução desse porte; na emoção, ou melhor, na implementação estético-narrativa, Andrucha mostra-se tímido, apenas cumprindo a cartilha do gênero. Seria o brilho da criatura ascendendo sobre o criador?
Dica de Música: "Burn it blue" (Caetano Veloso e Lila Downs)

Comer Rezar Amar: Uma auto-ajuda estilizada

Comer Rezar Amar, novo filme de Julia Roberts dirigido por Ryan Murphy, fica na linha tênue entre o edificante e o didático. Mas, talvez por se protegido pela pecha de autobiográfico, a trama desce redondo em nossa consciência, principalmente para aqueles que já passaram por uma auto análise durante a conflitante casa dos 20 a 30 anos.
Versão para o cinema do best-seller homônimo da escritora americana Elizabeth Gilbert, o filme acompanha Liz, que transcende as neuroses femininas de sua vida, chegando à conclusão de não era o que queria, nem o seu ideal de felicidade. Joga (dolorosamente) para o alto um casamento estabilizado e, posteriormente, uma relação que precocemente passava pela transição da paixão avassaladora para a acomodação de algo que poderia ser amor. Ou não.
Liz embarca então para uma viagem em busca desse preenchimento do vazio existencial que a vinha afligindo. Destino: Itália (comer), Índia (rezar) e Indonésia (amar). A primeira parada é pela belíssima arquitetura de Roma, permeado pela culinária de encher os olhos… do estômago; é melhor parte do filme. Em todos os sentidos. Julia parece feita perfeitamente para o papel ao ilustrar com seu inconfundível sorriso esse primeiro período da personagem que se dá nesse tempo para não fazer nada, só curtir o que a Itália tem a lhe oferecer: boa comida, tradição e certo charme descompromissado, sintetizado num melancólico jantar na casa da família de um amigo romano, onde Liz olha para si, em meio àquele banquete de estabilidade familiar, e consente que está no caminho certo.
A segunda parada é a mais fraca. A Índia representa para Liz a busca pela espiritualidade e o equilíbrio, mas o roteiro força muito a barra na tematização disso. Mesmo com a participação de Richard Jenkins, que consegue catapultar qualquer maneirismo que suas falas insistam em impor, é evidente que a narrativa torna-se muito cansativa nesse período de iluminação espiritual da protagonista, como se o diretor não conseguisse estabelecer o mesmo equilíbrio (narrativo) que Liz almeja na trama.
A parte final, quando desembarca em Bali e se apaixona por um brasileiro (Javier Barden, se esforçando…) é bem bonitinha, mas peca pela previsibilidade, com direito ao fechamentol clássico de hesitação inicial para um final feliz.
Ryan Murphy, que faz um excelente trabalho na TV americana com séries como (a ótima) NIP TUCK e o fenômeno GLEE, tem um desempenho dúbio em sua direção: domina bem a engenharia, mas vacila na sedimentação narrativa – algo já reparado em seu primeiro filme, o semiótico Correndo com tesouras. Preocupado em manter a estrurura da literária, Murphy deixou seu filme um tanto cansativo, a ponto de, no final, o resultado prático das transformações pela qual Liz passou ser, praticamente, inóspito ao espectador.
Comer Rezar Amar vale mesmo pela quase sessão de análise que propõe em suas quase duas horas de duração. É aí que está a sua redenção, pois mesmo quando se torna chato, você provavelmente vai estar envolto com pensamentos sobre “o rumo que a sua vida tomou, no trabalho e no amor”, como diria Lulu Santos.
Dica de Música: "Vilarejo" (Marisa Monte)

"The American" e a tese da melancolia

O cinema contemporâneo nos dá a ligeira impressão de que precisa incessantemente se justificar pelo ideal da reciclagem. E quem vos fala isso não é um “resenhista” da terceira idade, mas que ainda nem passou da barreira dos 25 anos.
The American (que na “criativa” versão brasileira se chamará Um Homem Misterioso) é uma das provas desta divagação. Protagonizado (com sua comumente elegância cênica) por George Clooney, o filme é baseado no livro A Very Private Gentleman, de Martin Blooth, e acompanha a obscura história de um matador profissional que busca a aposentadoria, devido ao esgotamento emocional do trabalho, em um último serviço, na região montanhosa de Abruzzo, na Itália.
O argumento é batido, mas a direção de Anton Corbijn (Control) procura imprimir uma personalidade ao tema, com muita câmera parada, uso de fotografia barroca e predileção pelo subtexto. A reinvenção do gênero aqui acaba por tolir a vivacidade do filme. Não que a nossa geração “Bourne” não esteja apta a absorver esse tipo de maneirismo, afinal, temos nossa representação geracional no talento silencioso de Sofia Coppolla. O problema é que nesta busca por um novo olhar sobre o velho, o filme exprime pouco do que poderia ser, resultando num longa de (muitos) bons momentos, mas de pouca vivacidade cinematográfica. Está longe de ser ruim, mas a sensação é de que não algo não engrenou.
Clooney aproveita a placidez com que o diretor leva o filme e constrói seu matador um tanto kafkaniano. Mereceria uma indicação ao Oscar pela inteligência com que se vale de seu silêncio. O diretor tenta equilibrar algumas boas cenas de perseguição com certa introspecção narrativa e mesmo conseguindo um clímax final honroso, é indisfarçável que o seu maior êxito foi ter conseguido transferir o viés lacônico de seu protagonista para todo o filme.
Taí, a contemporaneidade, mirando a constante renovação, por vezes, acaba atingindo a melancolia.
Dica de Música: "Condicional" (Los Hermanos)

É maduro, é humano, é Sofia Coppolla...

Einstein não era só um gênio, era também um sábio quando dizia “…deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio e eis que a verdade se me revela”.
Foi nessa frase (antológica) que pensei assim que acabou – de forma um tanto exprimível – a sessão do filmaço Somewhere (Em algum lugar, em boa tradução brazuca) de Sofia Coppolla, num dos últimos dias do Festival do Rio, no tradicional cinema Odeon inteiramente lotado.
Costumo dizer que Sofia maneja com perfeição seus filmes a darem forma(s) a um estado de espírito. Essa máxima só se aprimora a cada novo filme que lança. Somewhere guarda semelhanças discursivas em relação ao primeiro grande sucesso da diretora, Encontros e Desencontros (2003), contando, sob a reflexiva ótica da inadequação, as desventuras cotidianas de um ator (Stephen Dorff, perfeito e ressurgindo das cinzas) em seu mundo que conjuga glamour e vazio no mesmo verbo viver.
Respingando em tintas autobiográficas pela sua condição de filha de um dos diretores mais incensados do mundo, Francis Ford Coppolla, ou seja, conhecedora da rotina do mainstream hollywoodiano, Sofia vai destilando ironia ao estabelecer a apatia personalista de seu protagonista no circo midiático que a própria indústria alimenta – o que não deixa de ser curioso, uma vez que a própria cineasta vive nessa linha tênue entre a badalação de seu nome e o intimismo de seus filmes. Aliás, nesse filme ela amadurece o uso de metáforas e vai compondo cada cena com muitos signos representativos, seja no olhar “de ressaca” de Dorff diante de um show de pole dance de duas strippers; seja nos círculos que o mesmo dá em seu carro, completamente a ermo, em alta velocidade, no início do filme.
Sofia está interessada em expor o seu personagem de dentro para fora, para que o espectador não só entenda como compreenda que aquela inadequação não é apenas pontual, mas sim representativa da possível falta de um sentido para a vida. E isso é arregimentado com a chegada de sua filha, de um relacionamento passado, que passa um período com ele: a (des)construção de uma intimidade entre pai e filha chega a ser comovente, não pelos clichês, que o filme foge eficientemente, mas pela forma como isso é mostrado na tela.
A câmera de Coppolla é espertamente discreta, o que resulta num filme íntimo, mas com distanciamento exato para que as imagens falem por si. A cineasta comprova mais uma vez a sua marca como diretora, que remete muito ao que se vê no chamado “cinema de arte europeu”. Mas cá entre nós, ela consegue dar voz ao silêncio de forma muito mais objetiva que um Antonioni da vida… E nessa “subjetividade objetiva”, quase que parafraseando o mestre Fellini, Sofia Coppola consegue injetar mais do que verdade em seu filme; ela injeta humanidade em todas as arestas de sua ficção.
Dica de Música: "Playground of love" (Air)

O êxito do cinema social

Bróder tinha tudo para ser mais um daqueles filmes do chamado “favela movie” que tem infestado o mercado nacional, desde o estouro com o êxito definitivo de Cidade de Deus, de Fernando Meireles. Confesso até que fui assisti-lo na sessão hour-concours do Festival do Rio, com certa preguiça, mas me surpreendi com a contundência conseguida pelo o estreante em longas-metragens Jeferson De.

O filme acompanha um dia na vida de três amigos de realidades de vida distintas, que se encontram na região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, onde nasceram e cresceram. O ator Caio Blat, em interpretação carnívora, dá vida a Macu, que mora com a mãe Sônia (Cássia Kiss, sempre muito competente), comemora 23 anos e recebe a visita de dois amigos de infância, o bem sucedido e milionário jogador de futebol Jaiminho (Jonathan Haagensen), ainda muito ligado às sua raízes de periferia e na iminência de ser escalado para seleção brasileira, e o pai de família Pibe (Sílvio Guindane), que apesar de levar uma vida muito difícil, não mora mais na região.

A trama se concentra nesse encontro, num mesmo dia, que acontece entre os três. E é preciso de apenas um dia para que se configure as diferentes personalidades e posicionamentos de vida de cada um deles. Macu é o pilar do conflito que emerge nesta inter-relação por se complicar num dilema em que polariza a importância dessa amizade com os ditames do crime. Jaiminho se posiciona como a emoção instintiva das consequências desta sua visita ao lugar de origem, e Pibe é o suporte racional do encontro.

De, que também é o roteirista do longa, se vale desta batida perspectiva para realçar as incongruências sociais que gravitam num universo tão marginalizado como o Capão Redondo, que vira uma espécie de metáfora regional de todo o gueto periférico do país. Mas o grande acerto de De está na relativização que ele faz do tema. Não há espaço para glamourização ou tematização. Sua direção evoca uma base de crônica cotidiana de um universo, trazendo assim bastante credibilidade à história contada. Com meia hora de filme, já estamos inseridos até nos dilemas éticos de cada personagem. A narrativa trafega por esse mérito inteligentemente deixando para o expectador a primazia do julgamento.

Bróder vem sendo muito premiado em sua carreira pré-lançamento. De Gramado a Berlim, todos são unânimes em exaltar a propriedade com que o filme estabelece seu discurso. O cineasta Jeferson De é conhecido pela sua politização na luta pela representação do negro no cinema nacional; e com esse seu filme de estreia – e até por ter dado o protagonista de seu filme, a priori concebido para um ator negro, ao ator Caio Blat, provando que seu discurso está acima de cartilhas étnicas – ele prova que existe consistência por trás de qualquer ranço panfletário.

Dica de Música: "Mais que nada" (Sérgio Mendes)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Faltam razões a "Boca do Lixo"

Existem filmes que são salvos pela atuação de seu protagonista. O filme pode ser cheio de defeitos, mas a figura de um determinado ator ou atriz pode ter o poder de hipnotizar o expectador com sua bem construídamise-en-scène. É o caso do filme Boca do Lixo, de Flávio Frederico, que procura retratar a região paulista marcada pela prostituição e o tráfico de drogas nos anos 50 e 60 sob a ótica do maior e mais famoso traficante da região, Heroito de Moraes Joanides.

Tecnicamente impecável – a premiada fotografia e a difícil montagem são muito bem feitas – Boca do lixo é extremamente equivocado na construção dramática de sua história. Trata-se de um roteiro anêmico e superficial, que prefere ser fatídico onde deveria ser, pelo menos, narrativo. Se propondo uma cinebiografia, o filme não justifica o presente, superficializando o passado e segue pelo futuro de seu biografado, deixando o espectador desprovido de qualquer base de entendimento das motivações daquele homem que entra para o crime “apenas por gostar de estar com as mulheres da prostituição”.

Daniel de Oliveira é a melhor coisa do filme, compondo um Heroito assustadoramente verossímil e entregando-se em cenas antológicas como a em que sofre uma overdose violentíssima dentro de um carro. Cada extremo que o ator externa já faz valer toda a fraqueza conceitual do filme. Hermila Guedes (o sol da aridez de O céu de Suely) também destaca-se no longa, confirmando o seu extremo talento e seu rosto incrivelmente cinematográfico – luxo estético que poucas atrizes possuem, como Bridget Bardot e Eva Green.

O diretor Flávio Frederico cercou-se de um bom aparato para a realização de seu projeto, tanto que ganhou os principais prêmios técnicos do Festival do Rio, mas fica impossível não notar a instabilidadedramatúrgica que Boca do Lixo expõe. Nos poucos momentos em que a aparição de Daniel é banal, o filme infelizmente mostra o que realmente é.

Dica de Música: "Demais" (Verônica Sabino)

"Como esquecer" é literatura russa

Um filme sobre a dor da perda. É assim que o filme Como esquecer, de Malu de Martino pode ser sintetizado. Seguindo a costumeira vertente de nosso cinema, também é baseado em um livro, Como esquecer – Anotações quase inglesas, de Myrian Campello, e narra o drama de Julia, uma professora universitária (uma Ana Paula Arósio totalmente desglamourizada) que tenta se recuperar de uma eloquente separação, que a deixa em estágio de desespero e opressiva reclusão.

Malu reforça bem esse nebuloso sentimento que vai corroendo a vida da personagem, em planos claustrofóbicos e homeopáticos flashbacks que exprimem muito mais do que mostram. A direção procura ilustrar essa obscuridade quase que integralmente no filme, tornando o longa excessivamente pesado e denso. Ainda que, por vezes, resvale num “descanso cômico” na figura do ator Murilo Rosa, que interpreta o amigo íntimo de Julia, e naturalmente o seu contraponto, que procura o tempo inteiro fazê-la voltar a vida, assim como Lisa (Natália Lage), que também sofre um grande revés da vida, mas procura encarar o dilema de forma mais expansiva. Os três acabam indo morar juntos numa região remota do Rio e vivenciam formas distintas de seus dramas pessoais.

Emoldurado por uma fotografia fria e soturna, o filme encontra seu ponto alto nos diálogos travados entre cada integrante desse grande conjunto de sobreviventes emocionais de suas próprias vidas. Como Julia é professora de literatura inglesa, suas digressões sobre os paralelos entre a obra de Virgínia Wolf (e suas contemporâneas literárias) e a vida são bem consistentes e trazem boas metáforas para o caminho que a história vai tomando, principalmente com a chegada da personagem de Arieta Corrêa (num de seus melhores desempenhos) que passa a ser um norte na obtusidade em que a vida de Julia se encontra.

Mesmo sendo um belo filme, e de certa forma, um perturbador retrato do luto autoimposto de um término de relação, a diretora pesa a mão demais, acabando que o longa sufoca em seu próprio dilema, tornando-se excessivamente pesaroso. Sabe a literatura russa? Genial em muitos aspectos, mas excessivamente opressiva. É assim que o filme se insere, e é por aí que o filme não rompe a barreira do correto, sem ser extraordinário.

Dica de Música: "Feels like the first time" (Corinne Bailey Rae)

A delicadeza de "Malu de bicicleta"

Uma espécie de Dom Casmurro contemporâneo, o filme Malu de Bicicleta de Flávio Tambellini é uma grata surpresa na apática seara dos filmes brasileiros que versam sobre relacionamentos – não necessariamente comédias românticas. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme conta a história de um empresário paulista (Marcelo Serrado) que é atropelado por uma mulher (Fernanda de Freitas, graciosa) na orla carioca e se apaixona perdidamente. Tambellini constrói seu filme com leveza, dando bastante insumos para uma identificação com seus personagens. O roteiro é espirituoso e tem boas sacadas, dando um novo caminho ao batido conflito do ciúme em uma relação estável que culmina num final um tanto melancólico.

Depois do fraco Passageiro – segredo de adulto, Tambellini exibe maturidade em sua nova produção, principalmente por conseguir estabelecer uma crônica das relações amorosas desprovida de pretensões ou de “filosofismos”; apenas disposto a contar uma história prosaica que capta bem a sagacidade de Rubens Paiva em ilustrar a passionalidade do homem diante de uma situação de paixão extrema.

Esse é um gênero que rende caminhões de dólares lá fora, mas que aqui não conseguiu se estabelecer muito pela falta de habilidade em dialogar com o mesmo. Apenas os filmes de Sandra Werneck (como o ótimoPequeno Dicionário Amoroso e o notável Amores Possíveis) conseguiram alguma repercussão positiva, ao contrário de bombas como Mais uma vez amor, de Rosane Svartmann – que ainda nos deve um filme decente, mas dizem que seu próximo filme Desenrola, vem pagar essa dívida – e Dom, deMoacyr Góes (um horror).

Da seleção competitiva de filmes da Premiere do Festival do Rio, Malu de Bicicleta foi, sem dúvida, um dos filmes mais sinceros e agradáveis, mesmo sendo apenas correto de uma forma geral. Se bem que no cenário atual de nosso cinema, onde a grande maioria se divide entre a apatia e o excesso de pretensão, o filme de Tambellini é um achado.

Dica de Música: "Minha flor, Meu bêbe" (Cazuza)

Nada além dos paetês...

Toda a vez que o cinema brasileiro (recente) ambiciona retratar uma relação humana mais complexa, sempre esbarra na falta de consistência de sua pretensão. Foi assim no polêmico (!) Do começo ao fim, deAloízio Abranches que prometia muito com um argumento delicadíssimo onde dois irmãos se relacionam sexual e emocionalmente, levantando uma possível discussão tanto sobre o homossexualismo quanto sobre o incesto. Mas eis que o resultado termina em uma história rasa de discussões, onde o conflito inexiste num universo que precisa de justificativas pelo menos à uma reflexão.

Elvis e Madona, estreia na direção de longas de Marcelo Lattiffe, sofre desta mesma síndrome: retrata a inusitada relação de um travesti e uma lésbica, mas é desamparado por um roteiro que não dimensiona às possibilidades e discussões que esse envolvimento traria. Lattiffe ainda procura tratar da trama pela via do humor, o que acrescentaria uma ótica bem interessante ao tema, mas essa opção de gênero acaba por deslumbrar demais todo o filme, que acaba virando um pastiche do assunto, com frases e situações que beiram o escracho e resultam no inevitável riso fácil. Em nenhum momento o filme apresenta as motivações de seus personagens – o casal se conhece, se apaixona, aceita a situação como se fosse rotineira e o roteiro só ampara esse ciclo para angariar gargalhadas da plateia, como se a comédia em si não fosse uma plataforma verossímil a uma discussão mais ampla da relação.

Os atores, entretanto, são o destaque do longa. Simone Spoladore faz uma composição precisa de sua personagem homossexual e Igor Cotrin consegue trazer humanidade a seu travesti que o roteiro insiste em caricaturar. Até o elenco de coadjuvantes é muito bom. Faltou mesmo um roteiro que fosse mais inteligente na abordagem e não condescendente ao artificialismo do humor raso. Assisti ao filme em sua sessão de gala no Festival do Rio e ele realmente fez muito sucesso entre os presentes, uma vez que a plateia se divertiu muito. Mas aí é que está: muitas gargalhadas, aplausos em “cena aberta”, mas no fim o que era para ser um interessante retrato das múltiplas possibilidades do desejo (ou do amor?), acaba virando uma comediazinha que se esquece com a mesma rapidez que é consumida.

Dica de Música: "Eternamente" (Fafá de Belém)

A bipolaridade de VIPs

Vencedor do Redentor de Melhor filme do Festival do Rio 2010, VIPs, de Toniko Melo estava sendo considerado o Prenda-me se for capaz brasileiro, mas o filme é, na verdade, um thriller muito mais preocupado em investigar as motivações psicológicas de seu indivíduo do que acompanhar suas armações emblemáticas, como no filme de Spielberg.

Protagonizado por um (cada vez mais) inspirado Wagner Moura, o filme conta a impressionante história real de Marcelo Nascimento da Rocha, piloto que se faz passar pelo dono da companhia aérea Gol. Baseado no livro Vips – Histórias reais de um mentiroso, de Mariana Caltabiano (que apresentou no Festival um documentário sobre o mesmo tema), VIPs vai radiografando o percurso da ambiguidade de Marcelo, que teve uma família decadente – a atriz Gisele Fróes dá vida a mãe do protagonista, em uma atuação memorável, não à toa premiada como Melhor Coadjuvante no Festival – que o desestimulava em suas ambições de vida. Até que ele decide partir para o Centro-Oeste, onde aprende a pilotar, passando a trabalhar para um traficante argentino. Daí sua vida vira uma mistura de trapaça, acaso e sorte.

Toniko centra sua trama mais na relação do protagonista com sua (falta de) identidade e não parece preocupado em tematizar suas estripulias ilegais. Com isso, o filme torna-se mais denso do que o esperado e isso não é um demérito. Talvez careça de mais estilismo para implementar melhor essa opção narrativa mas a história rende bem, com um apuro técnico muito bom, o que aliás é a marca da O2, produtora deFernando Meirelles, que assina a produção. A trilha de Fernando Pinto também é muito bem feita e até dissonante do que vem sendo feito em trilhas no cinema nacional.

No fim, temos a sensação de termos participado de uma sessão psicanalítica de um homem em conflito consigo mesmo, conflito este que se estende pela narrativa que oscila entre a estética convencional e o discurso notadamente psíquico. O filme acaba e esse conflito também contamina o espectador na avaliação do que acabou de assistir. Será que o filme é transcendental ou bipolar?

Dica de Música: "Jesus to a child" (George Michael)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A direção certa de Ben Affleck

Exageradamente subestimado em sua carreira de ator, Ben Affleck ressurgiu para público e (principalmente) para crítica numa bem sucedida carreira de diretor. Em 2007 lançou Medo da Verdade, adaptação do livro Gone Baby Gone, do escritor norte-americano Dennis Lehane (o mesmo do vigoroso Mystic River, adaptado para os cinemas por Clint Eastwood em 2003, que, por aqui, chamou-se Sobre Meninos e Lobos). Em sua estréia na direção, o ator demonstrou talento apurado ao esmiuçar as ambiguidades que o livro evoca em sua estrutura narrativa. Affleck dirigiu a produção com uma secura imprescindível para o sucesso (pelo menos artístico) de sua pretensão.
Agora ele encara seu segundo filme (e desafio) com The Town (ridiculamente traduzido no Brasil como Atração Perigosa) em que, não somente conduz, como também protagoniza, provando que assim como sua direção, sua atuação merece ser vista com respeito.
Mais uma vez adaptando um texto literário (baseado no livro The Prince of Thieves, de Chuck Hogan), o ator/diretor conta a intricada trama de Doug MacRay (vivido pelo próprio), um assaltante de carros-fortes que decide parar de viver na marginalidade. Um assalto que termina fazendo uma gerente de banco (Rebeca Hall) de refém, acaba sendo o estopim para essa sua decisão. É claro que os dois acabam se envolvendo num jogo de extremos entre paixão e marginalidade. O filme conta ainda com um bom time de coadjuvantes como o badalado Jeremy Renner (a coisa mais interessante do superestimado e oscarizado Guerra ao Terror), como um tenso antagonista, Jon Hamm (Mad Men) e uma surpreendente Blake Lively, provando ter vida própria para além de sue glamuroso papel de protagonista na série Gossip Girl.
Procurando mais radiografar do que simplesmente ambientar o filme em sua Boston natal, Affleck – que também contribuiu ao roteiro – é seguro na direção do longa, sendo claramente influenciado pelos filmes policiais americanos da década de 70. Compreende perfeitamente a natureza do gênero de seu filme e vai manejando a tensão sempre de acordo com o crescimento da trama. Assim como em seu filme anterior, há ainda problemas no roteiro – em Medo da Verdade a engenhosidade excessiva quase atrapalha o bom resultado final. The Town exibe ganchos muito inverossímeis e sua conclusão beira o melodramático, quase que dissonante do restante do filme. Sorte que Affleck mantém sua direção na objetividade do que se propõe e essa segurança faz toda a diferença. Se continuar nesse raciocínio fílmico poderá chegar ao panteão dos grandes realizadores do cinema. Volta por cima ele já sabe muito bem como dar.
Dica de Música: "Condição" (Lulu Santos)

A Suprema Felicidade de Jabor é meramente pessoal

A Suprema Felicidade, novo filme do polemista Arnaldo Jabor após 25 anos sem filmar, é um longa de retrospecto. Mirando sua lente no lirismo de uma memória afetiva, o diretor evoca a verve Felliniana de filmar para um exercício de saudosismo estético que pode ou não ser satisfatória numa conjuntura cinematográfica.
A trama começa com o fim da Segunda Guerra e vai narrando a história de Paulo e sua família. De como seus pais (Dan Stulbach, eficiente, e Mariana Lima, surpreendentemente deslocada no papel) se conheceram e a decadência futura do casamento, assim como estabelece o amadurecimento do menino que vira um rapaz (Jayme Matarazzo, assertivo em sua delicadeza), que olha para o mundo com um romantismo quase pueril, de acordo com a ingenuidade reinante na época. A intensa amizade com seu excêntrico avô (Marco Nanini, de longe a melhor coisa de todo o filme) o leva a compreender a boemia carioca e a instabilidade de um mundo em transformação.
Jabor parece não estar interessado em contar propriamente uma história e sim em fazer o espectador se transportar para um tempo em que o próprio tempo era relativo. E nessa busca o diretor acaba por cair na armadilha da passionalidade: de tão encantado com o universo idealizado, fez um filme excessivamente pessoal e não necessariamente universal.
Quando questionado sobre o porquê de seu retorno ao cinema após tanto tempo, Jabor afirma que o jornalismo – e a política, seu tema frequente – lhe trouxeram dinheiro, mas o roubaram a esperança. Voltar a filmar era a busca por esse bem que os últimos anos o havia destituído. Faz bastante sentido; porém, em termos de contundência, quando Jabor era desertor da arte produzia ideias mais provocadoras. Sim, pois até para falar de uma felicidade suprema, é necessária certa dose de instigação…
Enfim, A Suprema Felicidade não é um filme necessariamente ruim, apenas não corresponde nem às expectativas de um filme de Arnaldo Jabor - nem falo do fel discursivo de seus filmes das década de 70 e 80 -, nem compreende satisfatóriamente a pretensão estimulada por ser título.


Dica de Música: "Você é minha" (Caetano Veloso)