terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os últimos dez anos de Woody Allen e sua paranóia criativa

Dada a prolificidade de sua obra, o cineasta Woody Allen é sempre acusado de estar próximo ao declínio, ou crise criativa, ou até esgotamento crítico de seus filmes. Mas com a mesma perspicácia com que constrói os assertivos elementos cotidianos de seu universo, Woody comprova que sua mente é tão produtiva como inventiva, mesmo com sua auto demanda de colocar um filme por ano nas salas de cinema. E a prova disso é a (boa) seara de filmes que o diretor novaiorquino produziu na primeira década dos anos 2000.



2000: Trapaceiros


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Allen começou a década num filme mais tímido em sua sagacidade crítica, mas inteirado nas bases do farsesco.


O filme conta a história de Ray Winkler (Woody Allen), um lavador de pratos e ex-presidiário. Um fracassado que sonha em fazer o maior roubo de sua vida. E sua oportunidade está ali, em sua própria cidade, à poucos quarteirões de sua casa. Em um banco, que fica atrás de uma pizzaria que está vazia, disponível para alugar. Hugh Grant parece feito para os filmes do diretor… E olha que a observação londrina só veio cinco anos depois…


2001: O Escorpião de Jade


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C.W. Briggs (Woody Allen) é, segundo ele mesmo, o melhor investigador de seguros dos anos 40. Ele se orgulha de conseguir capturar qualquer trapaceiro entrando em sua mente e desvendando seus mistérios. Entretanto, desta vez Briggs tem um desafio diferente: precisa capturar um ladrão que utiliza poderes hipnóticos oriundos do Escorpião de Jade.


Filme de época em que Allen “homenageia” os clássicos filmes das décadas de 50 e 60, que se caracterizavam pelo embate de casais para discutir a sociedade. Mas nada é assim tão dogmático nas mãos de um diretor como ele, e o filme vira uma comédia absurda que não menospreza a capacidade do autor de zombar dos limites do ridículo.


2002: Dirigindo no Escuro


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Dirigindo no Escuro gira em torno de um diretor de cinema que fez muito sucesso no passado, mas foi abandonado pelos grandes estúdios por causa de seu temperamento excêntrico. Até que a ex–esposa do mesmo consegue com que ele filme no estúdio do namorado dela. Para muitos, um longa metaforicamente autobiográfico, mas é também um roteiro que alfineta a própria Hollywood. A leveza da trama talvez soe inconsistente, porém, é notável o domínio do diretor sobre sua obra.


2003: Igual a Tudo na Vida


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Um comediante judeu tímido e inseguro, que analisa os próprios sonhos com a ajuda de um terapeuta, vive sérios problemas conjugais com uma garota distraída e liberal, tendo como pano de fundo as maravilhosas paisagens das pontes e bosques do Central Park. Talvez o filme mais questionável da década analisada, mas essa espécie de tentativa de Allen em rejuvenescer a sua visão de mundo, sem descaracterizá-la, é melhor do que tentam dizer que é. Fora que Jason Biggs é um achado como a versão teen do diretor.


2004: Melinda e Melinda


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Um trabalho que revela o quão lúcido o diretor ainda está. Ao narrar uma mesma trama sobre duas perspectiva (a comédia e o drama), Allen faz de seu filme um interessante exercício de linguagem e um meio de fazê-lo expurgar alguns sentimentos que por vezes travestem-se apenas de pontos-de-vista.


2005: Match Point


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Chris (Jonathan Rhys-Meyers) é um ex-jogador de tênis profissional que se apaixona por Nola (Scarlett Johansson), uma bela mulher que namora seu amigo Tom (Matthew Goode), futuro cunhado de Chris. Um enredo que pende para o trágico, sob a via do alpinismo social tão clássico nas grandes literaturas européias. Um de seus melhores filmes de todos os tempos (se não, o melhor!).


É um Woody Allen denso, desmitificando a humanidade do indivíduo e jogando na cara do espectador que não existe acaso. Existe sorte. Talvez esse seja o seu roteiro mais completo, onde as dimensões que provoca são de extrema importância para o entendimento do discurso. Assim como no também ótimoInteriores, no qual foi um Bergman muito competente, aqui Allen elevou Dostoiévski ao patamar de um Nelson Rodrigues.


2006: Scoop – O Grande Furo


scoop Woody Allen e sua paranóia criativa: 2000   2010


No barco que o transportaria para o além, o recém-falecido jornalista Joe Strombel (Ian McShane) recebe uma dica que pode ser um grande furo de reportagem (scoop, na Inglaterra). De posse dessa informação, ele dá um jeito de voltar ao mundo dos vivos e acidentalmente se depara com Sondra (Scarlett Johansson), uma estudante americana de jornalismo que está em Londres visitando amigos. Ele a encoraja a investigar o charmoso aristocrata Peter Lyman (Hugh Jackman), que pode ser o “Assassino do Tarô”, um serial killer que vem agindo na cidade. Nessa missão, Sondra contará com a ajuda de Sid Waterman, um mágico picareta interpretado por Woody Allen.


Até hoje não sei se esse é um filme incompreendido ou realmente fraco, mas algo aqui ficou meio esquisito e deslocado. Fica interessante a visão mais solar de uma até então cinzenta Inglaterra, ainda que isso venha com certa dose de mordacidade.


2007: O sonho de Cassandra


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Para liberar o dinheiro aos irmãos, tio Howard exige que eles cometam um crime que o livrará da cadeia. Terry, apesar de extremamente endividado com agiotas, refuta a idéia dizendo que não é capaz. Já Ian, querendo manter o romance com uma atriz interesseira (Hayley Atwell), aceita a tarefa e tenta convencer o irmão de que eles devem fazer o serviço juntos.


Muitos o comparam – estruturalmente – a Match Point, mas o foco aqui, de uma forma geral, é na fatalidade dos extremos aliado às convenções familiares (mais parecido com a obra-prima de Sidney Lumet, Antes que o diabo saiba que você está morto). Colin Farrell e Ewan McGregor são dois irmãos que se antagonizam quando precisam fazer escolhas decisivas às suas vidas. Um filme seco e direto. Um Woody Allen vívido e sagaz.


2008: Vicky Cristina Barcelona


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Vicky Cristina Barcelona acompanha duas amigas de férias na capital catalã. Vicky (Rebecca Hall) é centrada, prática. Cristina (Scarlett Johansson) é o oposto: impulsiva, meio-artista. Em Barcelona, no verão, as duas visitam os cartões postais da cidade e vagueiam pelas ruas ensolaradas. Numa noite, conhecem Juan Antonio (Javier Bardem), um pintor que teve um divórcio conturbado com a mulher, Maria Elena (Penélope Cruz), linda – e surtada.


Essa década é marcada pelo “cinema turístico” de Allen, que leva sua paranóia criativa para outros microcosmos que não a sua Nova York de sempre. Depois do ótimo trabalho em Londres, mira sua câmera para a Espanha e, mais do que incorporar Almodóvar (nas cores e na libido), Allen revela ao mundo que suas idiossincrasias encontram vazão em qualquer espaço. Certamente, está na galeria de seus melhores filmes e ainda consegue a façanha de dar a exuberante Penélope Cruz um delicado papel, fazendo-a transpor a caricatura e ainda ganhar um Oscar. Ufa…


2009: Tudo Pode Dar Certo


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Boris Yellnikoff, separado, suicida frustrado, quase Prêmio Nobel de Física e professor de xadrez para crianças, nutre verdadeiro ódio pela humanidade. Sua vida muda, no entanto, quando conhece Melodie (Evan Rachel Wood), uma jovem loira e boba do sul dos Estados Unidos. Em sua inocência, a garota admira a “genialidade” de Boris e logo se apaixona. Não tarda para que os dois se casem, o que gera uma série de encontros e desencontros envolvendo os pais da menina e amigos de Boris.


Nesse filme, Woody retorna não só a sua NY natal como a um tipo de humor que fez o seu nome na História do cinema. Com Larry David como seu alterego, essa produção nada mais é que um exercício do autor em expor sua visão desencantada da vida, mas, de certa forma, encantada nos que habitam nela. É mais do mesmo, mas com enfoque diferenciado. Como a vida, ora…


2010: Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos


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O novo filme de Allen coloca uma lente de aumento nas frustrações de seres que habitam um mesmo meio. São anseios que se misturam e se confundem, mas dizem muito sobre cada uma delas. Você Vai Conhecer o Homem de seus Sonhos parte do drama de uma senhora cujo marido a abondona após um casamento de 40 anos e vai mostrando que sua família (filha única e genro desempregado) não estão tão diferentes de sua crise doméstica.


Se na forma o filme revela um Woody Allen sem grandes novidades, no conceito, o autor é cada vez mais ácido ao nos expor à ridicularidade de nossos atos. Um filme com cara de simplório, mas de uma profundidade aterradora. E tudo feito com uma comicidade estratégica e adoravelmente leviana. Que venham os próximos 10 anos.


Dica de Música: "Flight Attendant" (Josh House)

Dois lançamentos que ditam os rumos da chamada MPB

Dois lançamentos musicais apontam para os caminhos que a tradicional MPB anda trilhando em tempos de redefinições de modos, conceitos e formas de se fazer, ouvir e trabalhar a música, como um todo. O termo MPB nunca foi muito claro, mas popularmente ganhou uma significância que aponta os novos de CDs de Vanessa da Matta e Milton Nascimento como de um mesmo gênero.

Vanessa lança seu Bicicletas, Bolos e Outras Alegrias, o quinto de sua carreira, com a missão de estabelecer-se na seara das grandes cantoras e compositoras do país. Missão complexa, mas que ela esbarra com frequência, ainda que aqui e ali, resvale em alguma pretensão demasiada. Essa Boneca Tem Manual ainda é seu trabalho mais consistente, mas o novo CD é interessante em sua ênfase na melodia tropicalista, com letras de poética cotidianas e extremamente espirituosas. Apesar da horrorosa e apelativa (no sentido dramático) canção Te Amo, Vanessa demonstra bastante fôlego em músicas que vão da observação madura de Um Tal Casal até o lirismo pungente de Quando Amanhecer, sua parceria com Gilberto Gil. Mas é em músicas como Bolsa de Grife e Fiu Fiu (a melhor do CD) que a cantora justifica a atenção que seu nome desperta: inventivas e musicalmente ricas, são composições que dão vida a um repertório que dá um quê de vanguarda ao ideário pop a qual Vanessa faz parte.

 Dois lançamentos que ditam os rumos da chamada MPB

Milton Nascimento é um cantor que sempre mostrou-se interessado em transgredir sua própria zona de conforto. E agora, com o lançamento de seu mais novo CD, E a Gente Sonhando, o cantor evoca suas referências iniciais para um trabalho que mira o futuro, até em sua concepção. Milton escalou 25 jovens músicos e compositores de Três Pontas, interior de Minas (parte deles ligado ao rock, parte ao Jazz), para que a sonoridade ilustre o que de novo tem nessa terra que gestou seu Clube da Esquina. E conseguiu. Arrisco dizer que E a Gente Sonhando é o melhor CD de MPB de 2010.

A energia jovial do grupo dialogou perfeitamente com o “barroquismo pop” do cantor, resultando num trabalho extremamente bem realizado. Da canção título, composta por Milton na década de 70 e nunca gravada por ele, que ecoa uma análise sobre o tempo; até às regravações belíssimas como a de Resposta do Tempo (imortalizada por Nana Caymmi), que ganhou uma curiosa densidade e Adivinha o quê, de Lulu Santos, revelando um Milton bem soltinho… Isso sem contar as composições novas, como a melancólica Amor do céu, Amor do mar, em que o cantor exorciza sua saudade da amiga Elis Regina, e Olhos do Mundo, de Heitor Branquinho, que vislumbra bem essa jovialidade que Milton busca, principalmente em versos como “Quem é capaz de fechar os olhos do mundo, Olhar para si?”.

Enfim, são 16 canções que desfilam numa mesma toada a perspectiva de um olhar com o expertise de um talento (com a voz ainda impecável) tão icônico quanto o de Nascimento.

Agora, quais são os rumos da MPB? Por esses lançamentos, percebe-se que passam pela observação do mundo a sua volta. Seja para se reciclar ou apenas para… transcender.

Dica de Música: o cd inteiro "E a gente sonhando" do Milton Nascimento

domingo, 21 de novembro de 2010

Perigo Real e Imediato


Harry Potter cresceu. O indivíduo e o universo que o cerca cresceram. Mas esse amadurecimento conferiu um preço alto à sua existência. “Vivemos em tempos sombrios”, é a primeira frase que se diz, bem na abertura de Harry Potter e as Relíquias da Morte (parte 1), que vem a ser a primeira parte do último livro homônimo da franquia escrita pela britânica J. K. Rowling. E esta espécie de prólogo diz muito sobre o que veremos nas quase duas horas e meia seguintes. Todo o lirismo fantástico dos filmes anteriores é substituído pelo ímpeto quase Hamletiano, onde a morte (ou seu espectro) está por toda a parte, e Harry conjuga seu conflito entre a busca por uma resposta e o medo de ser o que é (ou quem é).

A trama se firma na iminência de uma guerra entre os que querem o poder supremo e os que precisam combatê-las pela sobrevivência. É o filme mais sanguinário da franquia, onde muitas mortes acontecem (uma em especial é de cortar o coração!) e a tensão é mantida a cada segundo, com perseguições – a crueza dessas cenas as tornam impecáveis técnica e emocionalmente – e boa dose de suspense. Voldemort conseguiu se apoderar do Ministério da Magia e de Hogwarts e, sepultando o legando de Dumbledore, inicia uma caça sagaz a Harry e a tudo o que seu passado representa. Dito isto, Harry precisa destruir a imortalidade de Voldemort, o que se mostra bem mais complexo quando ele conhece um esquecido conto sobre as tais “Relíquias da Morte”, três poderosos objetos do mundo dos mortos: a capa da invisibilidade, a pedra da ressurreição e a varinha de Sabugueiro, esta que Voldemort precisa para matar Harry.

Rowling é uma escritora inteligente: sacia seus milhares de leitores com um universo rico em significações e ainda sabe alinhavar muito bem os devaneios que a sua própria fantasia propõe. Aliás, algo que Stephenie Meyer, criadora do universo Crepúsculo, nunca resolveu bem em suas obras. Na sessão para jornalistas da qual assisti esse filme, percebi certa discussão entre os espectadores sobre comparações entre as duas franquias, mas não acho que se comparam. O universo de Harry Potter é muito mais rico em camadas de observação e até mesmo em metáforas da temida perda da inocência, tributo do qual temos que pagar quando viramos adultos. Em termos de comparação, guardadas as devidas proporções, a obra de Rowling resvala mais na grandiloqüência de O Senhor do Anéis, onde a relação com o poder é sempre a tônica de um discurso.

article 1289898223237 0BD4D30C000005DC 186840 636x300 Harry Potter e as Relíqueas da Morte, parte I: perigo real e imediato

A trajetória do livro em filme é irregular, mas bem sucedida, principalmente por conseguir dar forma a um universo tão necessitado da imaginação lida – algo que filmes como A Bússula de Ouro eEragon não foram capazes de transgredir. Os primeiros filmes – Harry Potter e a Pedra Filosofal eHarry Potter e a Câmara Secreta – levaram a burocrática e reverente assinatura de Chris Columbus; o terceiro, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, dirigido por Alfonso Cuarón, foi o que mais evocou personalidade e considero o melhor de todos. Já O Cálice de Fogo de Mike Newell, destacou-se mais pela exacerbação da puberdade do elenco do que outras coisas. E, a partir do quinto e (para muitos) mais complicado livro da saga, a direção vem sendo feita pelo inglês David Yates, que vem com a expertise da TV britânica e uma certa subversão a forma (quase) clássica que a franquia vinha mantendo. Tanto que A Ordem da Fênix era quase clipada, com interessante referência documental (televisiva); logo em O Enigma do Príncipe, essa conjuntura resultou num filme mais emperrado a conceitos.

Mas todas essas experiências foram necessárias para que Yates chegasse a esse resultado final, uma vez que As Relíquias da Morte é seu filme mais perfeito: desde a trilha dramática e expressiva, até a impressionante fotografia galesa, passando por momentos de extrema sensibilidade, como a dança que Harry e Hermione (Daniel Radcliffe e Emma Watson, muito seguros em seus tradicionais papéis) fazem em meio ao caos que estão passando; a cena da mesma apagando a lembrança de sua família e até a nudez dos dois, num trecho marcado pela confusão instintiva de Ron (Rupert Grint, sempre hilário). São momentos do filmes notadamente marcados pela ousadia e, por que não, inventividade.

O grande mérito desta primeira parte final de Harry Potter nem é só o amadurecimento de sua própria história, mas também a forma como consegue diluir um tema tão pesado como a urgência da morte para gerações tão novas, o grande foco da bilheteria. É quase Bergman para baixinhos.

No fim, assustadoramente pessimista, ficamos com a mesma sensação de Harry, um sentimento de claustrofobia em que crescemos para desafios maiores. O filme, a priori, conseguiu superar esse desafio. Resta agora a movimentada segunda parte que, espero não repita o trauma de Matrix, onde oRevolution foi infinitamente inferior ao Reloaded. Mal posso esperar…

Obs: Preciso externar que nesta parte da franquia a química de Harry e Hermione só reforça o que eu sempre disse: os dois deveriam ser sim o casal central da história. Divago…

Dica de Música: "Teenager Dream" (sound Track GLEE)

"Tropa de Elite 2" é um serviço de utilidade pública!

Contundência, seu nome é “Tropa de Elite 2”. A continuação de um dos filmes mais emblemáticos do cinema nacional consegue a façanha de ser ainda mais pertinente e dentro de uma lógica social real e inteiramente assimilável. Se o primeiro chocava pelo extremo (verossímil, é bom dizer!) de uma espécie de conceito do que é o Bope hoje no Brasil, esta continuação se impõe justamente por relativizar não só a (hoje) icônica figura do Capitão Nascimento como toda a corporação e o Estado nacional.
Com um roteiro seguro de Bráulio Mantovani, o filme passa-se 15 anos depois do primeiro e Nascimento não comanda mais a ação no campo. Ele agora é Tenente-Coronel do Bope e lidera os Caveiras, mas que fica faz o trabalho externo é o Capitão Matias (André Ramiro). Com uma perturbadora rebelião no presídio Bangu I, a Tropa entra em campo, mas tem que passar por cima dos ideais humanísticos de Fraga (Irandhir Santos, em grande destaque), ativista dos Direitos Humanos. Ali, além da urgência dos fatos, ainda emerge a iminência de dois pensamentos antagônicos: a lei do bandido bom é bandido morto do Bope versus o apurado senso de humanidade e respeito de Fraga. A tensão é física e intelectual. E isso só nos primeiros minutos do filme, que conta com participação assustadora de Seu Jorge.
Conforme o filme vai se desenvolvendo, vemos a complexidade dos poderes que sustentam um Estado, ilustrado pelo oportunismo de governadores, hipocrisia midiática e conivência eleitoral. Nascimento vira subsecretário de segurança do Rio de Janeiro e começa a perceber que seus inimigos podem ser mais domésticos do que ele imagina, principalmente com o crescimento da tal Milícia, corroborada por muitos policiais corruptos. O diretor José Padilha é de uma competência poucas vezes vista no cinema nacional, ao incorporar e transferir esse desencanto que seu protagonista sente para o espectador, que assiste a tudo com um misto de tensão e reflexão sobre a cidade, o país, o mundo que vive.
Wagner Moura é o corpo, o sangue e a alma do filme. Tenho dúvidas se sem a sua presença e organicidade o filme teria o impacto que tem. Cada reação vista na tela é de uma humanidade (até em momentos nada diplomáticos) precisa e sua personalidade suscita amor e ódio, puxando pela razão e pela emoção, tudo num mesmo instante. O desenho dramático de seu personagem é simplesmente perfeito. E de suma importância para compreendermos que nessa guerra social em que vivemos, não são heróis que trarão o galardão.
Muito tem se falado que o filme tem respingos referenciais no cinema político de Costa-Gravas, o que faz bastante sentido, uma vez que filmes nacionais até mais notadamente políticos como “Brasília 18%”, do veterano Nelson Pereira dos Santos, se perderam na condução e no foco de seus discursos. Mas o tom politizado de "Tropa 2" tem mais a ver com a própria realidade que ele retrata, e Mantovani soube atentar para isso de forma que o panfletário fosse subjugado ao reacionário. E até a cena conclusiva aponta (muito) para tal. Se no primeiro temos uma desconsertante (!) catarse (social?) com o extermínio de um algoz dramatúrgico, mas perfeitamente real, nessa continuação temos a contemplação, um tanto metafórica, do poder federal, desembocando na bandeira oficial da nação. O impacto, no fundo, dessa vez é pior... Bem pior. Pois o nó na garganta é institucional. Muito mais do que o famoso "que país é esse?", agora a pergunta é "o que é esse país?"

Dica de Música: "Brasil" (Gal Costa)

sábado, 20 de novembro de 2010

Nasce um provável gênio

Não existe nada mais orgânico que uma relação autobiográfica sendo retratada no cinema. Eu Matei Minha Mãe é isso, a organicidade de uma relação passional entre um filho, Hubert (vivido por Xavier Dolan) e sua mãe, Chantale (Anne Dorval, ótima). Produção canadense dirigida pelo próprio Xavier, de tintas fortemente autobiográficas, o filme acompanha o cotidiano dessa difícil relação de um filho em confronto com sua mãe, dada as discrepâncias de visão de mundo, e principalmente, de gerações. Algo que se agrava ainda mais quando Chantale descobre que o filho é homossexual.

Xavier Dolan escreveu a trama quando tinha apenas 16 anos e dirigiu a produção aos 19. Sua precocidade é ainda mais impressionante pela forma como estabelece essa relação. Embora se valha de estilismos típicos de “primeiro filme” (o que apenas reforça a grandeza de sua estética), Dolan demonstra uma interessante maturidade ao paralelizar os extremos de cada razão de seus personagens. Não é um filme “revoltadinho”, como bandeira de uma geração pós-moderna que se vê incompreendida, discurso do qual poderia facilmente usar. Mas ele é mais inteligente que seus paradigmas, e faz um filme humano e versando mais sobre a falta de comunicação que se pode haver em qualquer seio familiar. É a subjetividade da figura “perfeita” da mãe versus a relativização dos anseios de um filho.

Dolan, que já está em seu terceiro longa (Amores Imaginários, que fez bonito no último Festival do Rio), prova que além de um ator de fartos recursos, é um cineasta muito interessado em dimensões. Dimensões humanas, geracionais e críticas. Não sei se Eu Matei Minha Mãe terá a mesma perenidade (histórica?) de um Acossado da vida, que sugou e expurgou a juventude de umGodard ainda muito interessante, mas não dá para não notar que Xavier ainda fará muito barulho. Welcome…


Dica de Música: "Relax, take it easy" (Mika)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Falta verdade na ficção de "Federal"

Apesar de ter sido produzido antes do primeiro “Tropa de Elite” (para você ver como é difícil fazer cinema nesse país!), o lançamento de “Federal” acabou por ficar à sombra da continuação arrasadora do mesmo. “Federal”, primeiro longa de ficção do documentarista Erik de Castro, assim como seu “primo rico” acompanha as atividades da Polícia Federal em Brasília. Tudo sob o julgo de intrigas e corrupção, tendo na figura do delegado Vital (Carlos Alberto Ricceli) seu ponto de conexão na história. Para desarticular uma quadrilha de tráfico de drogas muito bem amparada no poder brasiliense, ele monta uma equipe de federais formados por Daniel (Selton Mello), Rocha (Cristovam Netto) e Lua (Cesário Augusto).
Explorando uma fotografia obscura e granulada de Brasília, Erik procura destrinchar a conexão entre o tráfico de drogas e as camadas sociais tidas como incorruptíveis como as ONGs, o Congresso Nacional e até as organizações religiosas, mas o roteiro fica indeciso entre a pretendida contundência dessa co-relação e o viés hollywoodiano que seu gênero suscita. O roteiro acaba ficando sem personalidade, não compactando seus personagens e deixando furos ao longo da projeção. Isso sem contar a caricatura inexplicável de seu vilão, vivido por Eduardo Dussek, o desempenho deslocado de Selton Mello e o desperdício de Michael Madsen, num personagem mal delineado.
Por mais que se tenha boa vontade com o filme, é gritante que, com o nível que o cinema brasileiro vem atingindo nos últimos anos, sua realização foi, desde a concepção, primária em aspectos vitais para compreensão de seu (até interessante) discurso. Em alguns (poucos) momentos Erik demonstra personalidade, mas no geral, ele nos dá a entender que seu manejo de documentarista ainda não compreendeu as complexidades de uma boa ficção.
Dica de Música: "A queda" (Lobão)

O sol que ilumina a diretora Eliane Caffé

A diretora Eliane Caffé continua com sua forte marca autoral de fazer um cinema barroco, contextualizando um meio e um indivíduo numa dramaturgia bem pessoal. Seis anos após o premiado “Narradores de Javé”, ela volta com seu novo longa “O sol do meio dia” que acompanha a relação de dois desconhecidos sobre os grotões da região ribeirinha do Pará (região muito explorado pelo cinema nacional ultimamente). Chico Diaz e Luiz Carlos Vasconcelos dão vida a, respectivamente, Matuim e Artur. Enquanto o primeiro se enquadra no arquétipo do anti-herói que tem de fugir de Belém por causa de dívidas contraídas por seu falecido pai, o outro, que acaba de sair da cadeia por ter supostamente matado a esposa, mostra-se como um homem silencioso carregado pela culpa e pela abstração.
Caffé nivela a construção e desconstrução dessa relação ao longo do filme, que potencializa a máxima instintiva quando entra em cena a figura de uma mulher que, claro, vira um vértice de um triângulo amoroso.
“O sol do meio dia” talvez seja o filme mais consistente da diretora. E não dá para não observar o seu êxito em lapidar uma trama muito mais alicerçada nas motivações emocionais de seus personagens do que na ação. Mesmo que o roteiro não avance (em termos dramatúrgicos), a direção está sempre ali para manter o filme dentro da pertinência de sua história.
Dica de Música: "Quando amanhecer" (Vanessa da Matta e Gilberto Gil)

Scott Pilgrim salva o cinema do tédio...

Num mundo ditado pela convergência, nada mais pertinente do que o cinema acompanhar essa vertente seja pela estética, seja pelo próprio conceito. “Scott Pilgrim contra o Mundo” leva essa máxima à perfeição, se firmado como a melhor adaptação de um videogame que não existiu previamente como jogo. Trata-se de uma Hq. O diretor Edgar Wright conseguiu cristalizar com perfeição essa conjuntura, trazendo todos os códigos visuais dessas duas mídias (HQs e games) tão idiossincráticas. Scott (vivido por Michael Cera, especialista nesse tipo de papel) se apaixona por Ramona, mas para efetivar uma relação precisa enfrentar todos os seus ex-namorad0s. Daí somos jogados a uma sucessão de gags visuais e muito divertidas, que procura o tempo inteiro delimitar e interagir às possibilidades desses veículos resultando num filme vívido e deliciosamente original.
Apesar de todo o deslumbramento visual do filme, Wright consegue evocar perfeitamente as novas configurações de uma juventude tão sintonizada com os meios e mensagens de sua era. Saber dialogar nesses contextos é algo de suma importância para que o filme não se torne apenas um estilismo nerd. Tanto que o filme agrada a diversos públicos de formas diversificadas. Não compreendi o fracasso total de bilheteria nos EUA, algo que prejudicou sua exibição até aqui no Brasil (no Rio ainda não entrou em cartaz e pelo visto nem virá, restringindo-se a SP). Talvez tenha sido mal lançado, pois o filme é uma das coisas mais entusiasmantes que o cinema americano apresentou nos últimos anos. E o engraçado é que em meio a infantilização do cinema em geral, uma superprodução baseado em quadrinhos seja o último ranço de originalidade do cinemão.
Dica de Música: "Song 2" (Blur)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

"Gente Grande" é um dos piores filmes já feitos

Como jornalista, procuro ver de tudo. Até mesmo para apurar o possível conhecimento de causa ao avaliar um determinado filme. Já encarei sessões até de filmes da Xuxa e de Steve Seagal (!!). Em compensação, expurgo toda a minha impaciência nas letras, quando um filme “me prende” cerca de duas horas numa sala de cinema e não tem dignidade para tal. Ossos do ofício.
Gente Grande entra (inteiramente) nessa categoria: é simplesmente um dos piores filmes que Hollywood já nos vomitou. A nova comédia de Adam Sandler (que, inacreditavelmente também produz) conta a história de um grupo de amigos de infância que foram campeões do time de basquete do colégio. Trinta anos depois eles se reencontram no funeral do treinador do time e resolvem se reunir em um final de semana para homenagear o tal treinador.
Primeiro que a premissa, que foca no reencontro de vidas, já rendeu filmes antológicos, tanto na Europa, quanto nos EUA. E não só travestido de drama, mas em quase todos os gêneros – o canadense O declínio do Império Americano é uma bem construída comédia dramática. Mas o filme não tem roteiro. É isso, o filme é narrado de forma forçadamente episódica e sua narrativa inexiste. Não há trama, enredo, apenas a idéia inicial e uma sucessão de “esquetes” requentadas dos mais batidos clichês da comédia americana: idosa tarada, gorda que solta peidos exageradamente sonoros, um personagem que sempre sofre agressões etc, etc…
Interpretados pelo próprio Sandler (no automático, como sempre), com Chris Rock (num tolo personagem que se propõe a discutir o papel do macho na família moderna), Kevin James (destacado para sempre cair em cena e galgar gargalhadas), David Spade (o único ali que parece estar achando tudo uma grande merda) e o sempre surreal Rob Schneider (que, juro, com esse filme chega a dar saudade de Gigolô Americano de tão ruim). Fora que tem uma incompreendida participação de Salma Hayek . Meu Deus, depois que teve filho ela perdeu o juízo?
O “filme” até começa uma premissa de revanche de um tal jogo de basquete do passado, mas é nítido que o roteirista esqueceu o gancho e nos empurra uma solução idiotizada, com direito a lição de moral no final.
Eu gostaria muito de saber como um ator lê uma porcaria dessas e aceita produzir. E mais, como alguém pode ir assistir isso? Pois é, “resenhistas” sofrem…
Dica de Música: "Love the way you lie" (Eminem feat Rihanna)