Há um quê de Dostoiéviski no último e belo filme de Jonathan Demme, “O casamento de Raquel”. Os personagens escritos pelo escritor russo parecem viver num conflito crônico de inadequação social, gerando histórias humanas riquíssimas. E foi essa sensação que tive ao assistir ao filme, que rendeu uma indicação ao Oscar (e prestígio) para a atriz Anne Hathaway.
O filme acompanha a história de Kyn (Hathaway), que após nove meses internada numa clínica de desintoxicação, recebe alta para ir ao casamento da irmã mais velha, Raquel (defendida com inteligência pela atriz Rosemarie Dewitt). Kyn foi responsável pela morte de seu irmão, num acidente de carro. É nesse reencontro com a família – em um momento festivo – que o filme procura discutir as complexidades da culpa em contraponto ao perdão. Kyn procura a redenção no convívio familiar, pois a culpa interna ainda a atormenta, assim assemelha-se a Raskolnicov, protagonista de “Crime e castigo”, um dos livros mais conhecidos de Fiodor Dostoiéviski. O conflito interno questiona seu lugar no mundo. No filme, essa inadequação é mútua: a família também precisa aprender a lidar com o paradoxo que se estabelece na relação com a personagem, afinal, o amor de filha e irmã é latente, mas a mágoa da mesma ter se transformado num corpo estranho naquele microcosmo, por vezes, fala mais alto.
Demme é um diretor habilidoso. Não à toa, alguns de seus filmes viraram clássicos, como os ótimos “O silêncio dos inocentes” e “Filadelphia”. Em “O casamento de Raquel”, foi muito influenciado pelo movimento Dogma 95, com câmera na mão e estética crua e naturalista. Essa opção técnica ajuda a radicalizar o conceito intimista que a trama precisava para se impor. Há vários subtextos nessa festa familiar. Desde os relacionamentos inter-raciais até as esporádicas citações políticas. Demme demonstra convicção em sua direção – e auxiliado pelo roteiro maduro de Jenny Lumet - procura sempre imprimir uma atmosfera íntima entre os atores, e diga-se que, a construção dos personagens do pai (Bill Irwin) e da mãe (Debra Winger) é genial. Fato este, muito ajudado pelo excelente nível dos atores. Anne Hathaway reinventa sua carreira ao dar vida a Kyn, com uma garra cênica impressionante e tenho certeza que brilhará ainda mais em seu anunciado próximo filme, dando a vida a atriz Judy Garland, em uma cinebiografia.
A dor da perda, neste filme, é o que move as ações de cada personagem. Talvez num livro de Dostoiéviski essa revisão venha impregnada de pessimismo. Jonathan Demme (e sua roteirista) procurou não polarizar a moral de sua história com o otimismo. Ficou no inquietante caminho do realismo, que é onde reside a melancolia do trajeto que aquela família ainda terá que seguir para encontrar a difícil superação.
Enfim, mais um filme do diretor candidato a clássico.
Dica de música: “Aos nossos filhos” (Elis Regina)
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